Alguns relatos detalham agressões realizadas por agentes da Polícia Militar e da Prefeitura de Fortaleza.
O Ministério Público do Ceará (MPCE) e entidades não governamentais receberam denúncias anônimas com relatos de agressões sofridas por moradores de rua do Centro de Fortaleza. Alguns relatos detalham violências cometidas por agentes da Polícia Militar e da Prefeitura de Fortaleza. A polícia informou “estar apurando” os casos. Já a prefeitura negou os fatos.
Maria de Fátima Correia, titular da 10ª Promotoria de Justiça do MPCE, afirmou ter recebido “denúncias anônimas acerca de possíveis agressões e coerções sofridas por pessoas em situação de rua em abordagens de alguns policiais militares e guardas municipais”. No último dia 9, em reunião com o comandante do 5º Batalhão da PM, responsável pela segurança no Centro da cidade, a promotora relatou que os “excessos” teriam ocorrido “em várias praças” do bairro.
O MPCE aguarda nova reunião, em um prazo de 30 dias, para se manifestar novamente. O Ministério requisitou aos órgãos de segurança pública imagens de câmeras de vigilância instaladas nos logradouros públicos, “principalmente no entorno das Praças do Ferreira, da Lagoinha e dos Leões”.
A Guarda Municipal de Fortaleza declarou ao G1, em nota, que “ainda não foi notificada a respeito”. Já a Polícia Militar confirmou ter tomado conhecimento dos casos, afirmou que “o comandante da área irá apurar os fatos, para que as providências cabíveis sejam tomadas” e garantiu que “durante o curso de formação, o policial estuda conceitos básicos de gerenciamento de crises”, de modo que “o empenho é garantir a manutenção da ordem pública e a segurança das pessoas”.
A PM ressaltou, ainda, que “as pessoas que se sentirem prejudicadas podem procurar a ouvidoria, no quartel do Comando Geral, ou enviar solicitação pelo site Ceará Transparente”.
Agressões verbais e físicas
Marcelo Menezes, diretor do coletivo Fortaleza Invisível, atuante na assistência voluntária à população de rua, garante que já presenciou “agressões aleatórias, principalmente aos domingos”.
“A Praça do Ferreira é totalmente abandonada, porque o comércio fecha. Já vi policial passar dando chute nas coisas, sem motivo, e mandar saírem de lá. A agressão é tanto verbal como física, não tem dia nem hora”, lamenta.
Segundo Marcelo, a violência institucional também é praticada pela própria prefeitura. “Segunda-feira (9), umas 22h, tomaram todos os pertences das pessoas, jogando no lixo, e expulsaram todos de forma truculenta. Já imaginávamos que isso aconteceria. A Praça do Ferreira é o principal ponto turístico no Natal, sempre tem essa ‘limpeza’. Só não esperávamos que seria assim, e num horário em que nenhum órgão de defesa estava lá”, critica o ativista.
Elpídio Nogueira, secretário de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), nega que tenha havido violência ou “remoção” das pessoas e dos pertences. “Pactuamos durante quase um ano. Eles solicitaram lugar pra dormir, comer e tomar banho. Entregamos refeitório, pousada e aluguéis sociais para que saíssem da Praça do Ferreira. A partir disso, entregamos a praça à Agefis (Agência de Fiscalização) e à Guarda, que precisam mantê-la desocupada, porque será reformada em até 30 dias”, aponta.
Segundo o secretário, 154 aluguéis sociais foram concedidos a famílias em situação de rua, em 2018, o que não contribuiu para solucionar questão, “porque outras pessoas vieram ocupar o Centro”. Neste ano, 146 das 246 que viviam na Praça do Ferreira receberam o benefício, e as outras 100 foram direcionadas à Pousada Social, acolhimento noturno com 120 vagas aberto pela prefeitura neste mês.
Relatos
“Quem deixar as coisas aí e sair, eles levam. Se a pessoa tiver, mandam tirar. E se ela não quiser tirar, eles saem chutando”, relatou um jovem que preferiu não ser identificado. “Já perdi coisa também, mas agora tô lá na Pousada (Social). Eles não estão errado não, nosso canto não é aqui mesmo”, convence-se outro rapaz, que deixou a família após conflitos com a esposa.
Fernanda de Sousa, integrante da Pastoral do Povo da Rua, classifica as últimas ações como “higienização social”. “O povo da rua tem direitos, é cidadão da cidade, reafirmamos isso. Não podemos deixar de manifestar nossa indignação e pesar diante destes abusos à pessoa humana”, sentencia.
Violência
Boletim lançado em junho pelo Ministério da Saúde (MS) apontou 58 casos de violência envolvendo a população de rua de Fortaleza, entre 2015 e 2017. Em todo o Ceará, foram 233. Os casos são tanto de violência praticada por outras pessoas quanto autoprovocadas – estas últimas em apenas 7% das notificações em todo o País. O próprio MS reconhece que há subnotificação, seja porque a vítima não procura serviços de saúde , pela dificuldade de acesso a eles ou pelo não registro dos casos.
O acesso à saúde, inclusive, é uma das questões mais urgentes às pessoas que vivem nas ruas, como aponta Marcelo. “Falta muito a garantia de direito à saúde, educação e, óbvio, habitação. Além disso, muitos deles têm dons que não são trabalhados, e não têm capital de giro nem formação para montar um negócio. Sem capacitação profissional, não conseguem trabalhar nem sair da rua”, lamenta o ativista.
De acordo com a SDHDS, o programa “Novos Caminhos” – que aplica treinamentos e fornece bolsa-auxílio a pessoas em situação de rua e dependentes químicos – recebeu investimento de R$ 2 milhões, em 2019, e empregou cerca de 40 pessoas ao longo de 2018. Já neste mês, dez pessoas que vivem na Praça do Ferreira foram empregadas temporariamente para ajudar na limpeza e desmontagem da estrutura do Cine Ceará.
Censo
A última estatística oficial da população em situação de rua em Fortaleza é de 2015. Um novo censo foi prometido em 2017, e nunca cumprido. Em maio deste ano, o titular da SDHDS, Elpídio Nogueira, confirmou o cancelamento do censo. Segundo ele, o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) julgou a medida “um gasto desnecessário”.
Em 29 de agosto, o MPCE recomendou à prefeitura a realização da contagem, com prazo de 30 dias para elaboração do cronograma. Em nova reunião com a SDHDS, o CMAS aprovou o pedido. Segundo Elpídio, o plenário dará a definição final ainda neste mês e, se favorável, a Pasta já abrirá licitação. O valor estimado é de R$ 650 mil.