Naquele local, no início de fevereiro as temperaturas variam entre -30 a -40 graus Celsius
Um Boeing 777, uma emergência em voo e um pouso no meio do nada. O dia 1º de fevereiro de 2017 marcou o início da saga de uma das mais desafiadoras trocas de motor que um mecânico de avião poderia imaginar em sua carreira, no Aeroporto de Iqaluit, um local nada comum para se substituir um gigante motor a jato de 19.316 libras (8.762 kg).
Naquele local, no início de fevereiro as temperaturas variam entre -30 a -40 graus Celsius. Adicione ventos de 45 km/h e sinta-se com se estivesse a -60 graus. As árvores não crescem por lá, os verões são curtos demais. Lonas rasgam como papel diante dos ventos congelantes.
No meio desse inóspito nada, um lugar se destaca entre o sopé coberto de arbustos: uma pista solitária de 2.620 metros acompanhada por um terminal, e sem nenhuma pista de táxi cobrindo toda a extensão da pista.
O voo
O voo LX40 da SWISS International Airlines decolou de Zurique, na Suíça, na quarta-feira, 1º de fevereiro, às 16h20, horário da Europa Central. O plano de voo faria o avião atravessar o Atlântico, sobrevoar a ponta sul da Groenlândia, atravessar o Canadá e seguir em direção ao seu destino final em Los Angeles, passando pouco mais de 11 horas no ar.
A SWISS traça esse voo diário de 9.000 milhas desde 2016, utilizando seus Boeings 777-300ER, equipados com dois motores GE90-115B da General Electric – o maior motor a jato em operação comercial no mundo.
Normalmente uma jornada longa, mas sem intercorrências. Porém não naquele dia para o 777 de matrícula HB-JND.
Após cinco horas de voo, com o avião sobre o oceano, o comandante Roberto Battaglioni está cochilando na seção de descanso da tripulação enquanto o primeiro-oficial (co-piloto) e mais um piloto gerenciam o voo LX40. De repente, uma aeromoça chama Battaglioni para tirá-lo do sono.
“Roberto, você tem que ir direto ao cockpit. Este 777 acabou de se tornar um avião monomotor.”
Ao passar pela porta do cockpit, o comandante é informado de que o GE90 do lado esquerdo foi desligado automaticamente depois que seu sistema de auto-monitoramento detectou um problema.
Os aviões comerciais bimotores têm redundâncias para esse cenário exato, e ainda podem voar confortavelmente com apenas um motor. Mas, se o segundo GE90 tivesse um problema semelhante, os passageiros e a tripulação do LX40 estariam em uma situação crítica.
Quando um motor falha em um voo sobre a água, o procedimento padrão da aviação internacional exige o desvio para o aeroporto mais próximo o mais rápido possível. Nesse caso, a opção era uma pequena pista de pouso na Ilha Baffin, na província canadense de Nunavut, na cidade chamada Iqaluit.
O destino de alternativa
Iqaluit é a capital de Nunavut, lar de cerca de 7.000 pessoas de ascendência inuit e europeia. Embora esteja abaixo do Círculo Polar Ártico, a cidade tem um clima polar por causa da gelada Corrente Labrador que atinge a Ilha Baffin. A temperatura média mensal está abaixo de zero durante oito meses do ano.
O aeroporto de Iqaluit foi estabelecido como Base Aérea de Frobisher Bay pelo Corpo Aéreo do Exército Americano em 1942. Com sua pista de 2,6 quilômetros, serviu as Forças Armadas dos EUA até o início dos anos 60 e tem sido uma alternativa para desvios para voos transatlânticos de companhias aéreas desde então.
Possui serviços aéreos regulares (as aeronaves são o principal transporte dentro e fora da Ilha Baffin) e também um terminal, mas sem grandes hangares.
Quando o comandante Battaglioni voltou do cockpit, pediu desculpas aos passageiros e disse à tripulação que eles pousariam no aeroporto mais próximo por causa de um “problema técnico”.
O pouso de emergência
Battaglioni e sua equipe estavam fazendo uma aproximação em voo monomotor para um aeroporto que nunca haviam visto na vida real, e nem mesmo em simulador.
Apesar disso, tudo transcorreu muito bem, e quando o 777 pousou suavemente na pista “todos bateram palmas, até os esnobes”, disse depois a passageira e repórter Judith Conrady. Veja o pouso no vídeo a seguir.
No solo, o avião efetuou sua parada na pista, mas não conseguiria girar 180 graus com apenas um motor, de modo que um veículo rebocador precisou levar o Boeing 777 para o pátio.
Imediatamente, a prefeita de Iqaluit, Madeleine Redfern, ofereceu aos passageiros um passeio pela cidade durante sua parada não planejada. Mas, com as temperaturas em -30 graus naquele momento, sem espaço em hotel para acomodar os 216 passageiros e tripulantes e nenhum caminho fechado para levar os passageiros ao terminal, a SWISS decidiu manter todos no avião.
Depois de 14 longas horas, outro avião da SWISS, um Airbus A330-300, finalmente chegou e os levou para Nova York, onde eles foram transferidos para outro avião que os levou a Los Angeles. Fim da aventura para os passageiros, mas apenas o começo da saga para a aeronave.
Hora de chamar o socorro
“Meu primeiro pensamento foi: onde Iqaluit está no mundo?”, disse Matthias Althammer. O engenheiro de aeronaves da SWISS recebeu notícias do LX40 ao chegar no turno da manhã da quinta-feira, 2 de fevereiro. Ele imediatamente buscou Iqaluit na internet, e encontrou uma pequena cidade cercada por muito frio.
Enquanto isso, o LX40 já estava em alta no Twitter com fotos do 777 fazendo seu pouso.
Horas antes, enquanto a tripulação da SWISS ainda lidava com o motor parado durante o voo, o centro de operações da companhia aérea em Zurique já havia notificado o engenheiro de serviço de campo (FSE) da GE sobre o desligamento do motor.
Uma equipe da GE em Cincinnati (EUA) recebeu a notícia alguns minutos depois. Com a SWISS se movendo para levar outro avião para Iqaluit, a GE começou a explorar o problema e avaliar se o 777 ainda era passível de voar. A maioria não tinha ideia de onde estava Iqaluit. Exceto um engenheiro de Winnipeg que sabia muito bem o que esperar.
Depois do pouso, quando os dados e fotos do motor foram enviados à equipe da GE, os engenheiros determinaram que o turbofan não funcionaria tão cedo. Eles precisariam substituir o motor no aeroporto de Iqaluit.
Entrega expressa do gigante motor
A GE não tinha nenhum motor sobressalente nos EUA na época, e o mais próximo da empresa estava em Londres, enquanto a SWISS tinha um motor sobressalente em Zurique, que foi o escolhido para envio.
O GE90 tem 3,6 metros de comprimento e pesa mais de 8.700 kg. Seus fans (os discos frontais visíveis) medem 3,3 metros de diâmetro. Na potência máxima, o GE90-115B cria até 125.000 libras de empuxo – mais potência que o Titanic e o foguete Mercury-Redstone 3 de Alan Shepard combinados.
Essa carga incrivelmente grande e poderosa é muito maior do que uma fuselagem média de um cargueiro, de forma que poucos aviões conseguem transportar um GE90. E uma dessas aeronaves é o Antonov An-124.
A SWISS contratou um serviço de fretamento baseado no Reino Unido para que um An-124 levasse o motor e um conjunto de equipamentos para Iqaluit no sábado, quatro dias após o pouso.
Sem um hangar grande o suficiente para abrigar as ferramentas específicas do 777 e do GE90 no local, a GE e a SWISS se apressaram para reunir o que precisavam para realizar o trabalho. O técnico da SWISS, Eric Rüttimann, já havia prestado serviços de aeronaves em campo antes, mas não em um lugar como Iqaluit. Ele disse ao jornal alemão Blick im Abend: “Levei meia hora para anotar tudo o que me veio à cabeça e comecei a fazer as malas”.
O motor, um suporte de motor sobressalente, um suporte de substituição de carenagem e outras ferramentas básicas fornecidas pela SWISS foram finalmente empacotadas dentro do Antonov. A GE colocou seu próprio pacote Quick Engine Change (troca rápida de motor), incluindo uma barraca inflável, e muitos materiais de consumo.
Depois de chegar em 4 de fevereiro, cinco engenheiros da SWISS e 12 da GE começaram a trabalhar. Veja no vídeo a seguir a chegada do Antonov a Iqaluit.
A troca no frio profundamente congelante
A equipe da SWISS cuidou dos sistemas de preparação para a troca de motor, mas foi a GE que realizou a troca real. Ambas ainda contariam com o apoio da companhia aérea local First Air, do prestador de apoio de solo local e da Polícia Montada Real do Canadá (RCMP), que disponibilizou um hangar de apoio. Nenhum dos grupos havia se encontrado anteriormente, mas eles se entrosaram imediatamente.
“Fiquei surpreso com a rapidez com que a equipe foi criada”, diz Althammer, que fazia parte de um trio de técnicos da SWISS trabalhando diretamente na aeronave. “Você podia sentir a paixão de todos pela aviação e isso nos unia”.
A equipe combinada precisaria dessa paixão para enfrentar os desafios. “Havia um vento constante que fazia a coisa toda parecer ainda mais fria”, disse Rüttimann ao Blick im Abend. Sem vento, -30 graus é suportável, mas trabalhar desprotegido naquelas condições…não valia a pena nem pensar.”
A barraca inflável trazida pela GE provou ser um salva-vidas. Os geradores e a iluminação fornecidos pela comunidade de Iqaluit elevaram a temperatura interna da barraca para 10 graus relativamente agradáveis e permitiram o trabalho durante as noites de fevereiro, com suas 19 horas de duração. Qualquer pessoa ou qualquer coisa que se aventurasse do lado de fora seria congelada.
“Era difícil imaginar o quão difícil era trabalhar sob essas condições”, acrescenta Althammer. “Tínhamos que nos certificar de não tocar em nada com nossas mãos, pois teríamos ficado imediatamente presos a ela”.
Substituindo um motor de avião
Existem cerca de 12 etapas para trocar o motor – desde desconectar todas as linhas elétricas, pneumáticas, de combustível e hidráulicas até reinstalar as carenagens dos fans e os painéis do montante e executar uma verificação de vazamento.
Uma vez desmontado, o GE90 foi rapidamente conduzido para dentro do hangar da Polícia, onde a equipe da GE o desmontou e transferiu os componentes necessários para o motor de substituição. Algumas tarefas, como cuidar da unidade de energia auxiliar do 777, do sistema de ar condicionado e dos tanques de água associados, precisavam ser feitas do lado de fora, diretamente na aeronave.
O clima parou os trabalhos várias vezes quando os ventos moviam perigosamente objetos grandes e ameaçavam o congelamento de tudo. “As temperaturas e os ventos faziam muito frio para que até as pessoas locais permanecessem trabalhando”, disse Chris Chrissman, da GE, engenheiro de sistemas do programa GE90.
Por incrível que pereça, essas condições, apesar de serem perigosas para os seres humanos, reproduzem de perto as temperaturas típicas que os aviões enfrentam rotineiramente em altitudes altas.
Pronto para voar
Trabalhando continuamente, exceto nas interrupções climáticas, a equipe entregou o novo motor remontado e pronto para verificações de vazamentos, verificações de sistemas e testes no solo. Enquanto trabalhavam, os meios de comunicação na Suíça, no resto da Europa e nos Estados Unidos relatavam a história.
Finalmente, no dia 9 de fevereiro, às 18h, horário local, o avião taxiou pela pista pela primeira vez em uma semana. O Boeing 777 decolou na manhã seguinte, pousando no aeroporto de Zurique às 8h.
Trocar um motor – mesmo um gigantesco como o GE90 – em cinco dias não é uma tarefa notável. O fabricante do motor e os clientes de suas companhias aéreas praticam “testes de estresse” regularmente, trabalhando em vários cenários de manutenção/recuperação feitos em menos dias.
Mas nenhum desses cenários leva em consideração o clima extremo de Iqaluit. “A GE enfrentou outras condições desafiadoras no passado”, diz Chrissman. “Mas consideramos que essa troca de motor foi a mais extrema.”