Pesquisadores observaram região identificada como de clima árido no país pela primeira vez. Processo resulta das mudanças climáticas e acendeu alerta na comunidade científica brasileira.
Ao longo de quase 25 anos vivendo e trabalhando na zona rural de Juazeiro (BA), a agricultora Ana Lucia da Silva, 41 anos, viu a paisagem e o clima do lugar mudarem. Ela conta que já não consegue mais plantar mandioca e mamona, por exemplo, assim como faziam seus pais e avós. “Está cada vez mais quente. As chuvas diminuíram, e, quando vem, é por um curto período. Depois, só no outro ano. A gente sai para trabalhar porque é obrigado. Vai na roça aguentando o calor, solzão na cabeça, não é fácil, não”.
Ana Lucia é uma das moradoras da primeira região árida do Brasil, identificada por pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em cinco municípios do oeste da Bahia: Rodelas, Juazeiro, Abaré, Chorrochó e Macururé e que ocupam uma área de 5,7 mil km².
Em novembro do ano passado, o Cemaden publicou uma nota técnica com o achado inédito. A pesquisa avaliou dados climáticos de todo o país, registrados ao longo de 60 anos. As mudanças nas condições de clima foram comparadas entre si em blocos de tempo de 30 anos. A partir da análise das alterações na intensidade da radiação solar, precipitações, ventos e evaporação, os pesquisadores concluíram que o clima na região tinha mudado.
A mudança do padrão de clima semiárido para árido tem consequências práticas, pois diminui o índice de chuvas de 800 mm para 500 mm por ano em média, tornando o clima mais seco. Nessa condição, as chuvas são insuficientes para repor a perda de água pela evapotranspiração – a combinação de evaporação da água no solo e transpiração das plantas e corpos d’água como açudes e lagos.
A pesquisadora do Cemaden Ana Paula Cunha, uma das autoras do estudo, diz que o resultado da pesquisa foi inesperado, pois os autores previam até então apenas um avanço do semiárido para outras regiões além do Nordeste e partes de Minas Gerais. “É uma região onde nós temos visto de forma mais acentuada o aumento de temperatura desde a década de 60, e certamente mais acelerado nos últimos anos.”
Mais calor, menos chuva
A pesquisa do Cemaden demonstrou a relação entre o aquecimento global e a mudança no padrão climático no Brasil. O aumento das temperaturas acelera a evaporação para a atmosfera em um ritmo superior ao que é possível repor, o que leva ao déficit hídrico, e logo, a secas mais severas.
Em 2023, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicou que a temperatura na superfície da Terra atingiu um valor 1,1º C mais alto entre 2011-2020 do que o observado entre 1850-1900, após a Revolução Industrial.
No entanto, no Brasil, esse aumento foi mais intenso. Um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que a alta nas temperaturas no país nesse período foi de, em média, 1,5ºC, e em algumas regiões chegou a 3ºC.
Com isso, a região do semiárido nordestino, e que ocupa 12% do território nacional em nove estados e Minas Gerais, é mais vulnerável a essas alterações e atravessou longos períodos de seca. A última grande estiagem durou de 2012 a 2017.
Déficit hídrico
Por isso, a Agência Nacional de Águas (ANA) destaca que essas mudanças no clima têm impacto direto sobre eventos extremos, como secas prolongadas. A queda na oferta total de água pode levar a disputas pelo uso do recurso em diferentes setores. Dados da ANA apontam que 49,8% da água disponível no Brasil é aplicada em atividades de irrigação. Outros 24,3% para o consumo humano nas cidades. Mais 9,7% são gastos pela indústria e 8,4% são empregados na agropecuária.
“O que precisa ser realmente melhorado é a questão da governança da água, e isso implica em políticas públicas, mas também no engajamento do setor privado, porque o principal setor usuário é a agricultura irrigada. Temos que criar mecanismos e a própria iniciativa privada tem que trabalhar no sentido de fazer um uso mais eficiente da irrigação “, diz Javier Tomasella, pesquisador do Inpe.
A água disponível no país para essas atividades já está em declínio por conta da aridização. Um relatório da ONG MapBiomas apresentou um balanço da disponibilidade de água nos últimos 30 anos. Entre 2013 e 2021, foram registrados os menores níveis hídricos da série histórica, que começou em 1985. O país ainda concentra 12% do volume de água doce do mundo, mas perdeu 1,5 milhão de hectares de superfície de água em três décadas.
A menor oferta de água impacta a produção agrícola, a pecuária e a geração de energia, tendo em vista que 61,9% da matriz elétrica brasileira é oriunda de fonte hidráulica. “Aumenta preço de alimento, aumenta preço de energia, e obviamente afeta os mais vulneráveis” frisa Cunha.
Desertificação
Para os especialistas, apesar das condições climáticas adversas da nova região árida, não é possível classificá-la como deserto, onde o clima é ainda mais seco, hiperárido. No entanto, de acordo com o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), 85% do semiárido brasileiro atravessa um processo de desertificação, o qual “resulta na perda da fertilidade do solo e da biodiversidade, e no êxodo rural”.
Essa degradação da região atinge os cerca de 27,8 milhões de habitantes que vivem nos 1.267 municípios do semiárido. Desses, 62% estão nas cidades, mas 38% estão no campo. A desertificação da região, impulsionada também pelo desmatamento, pode tornar a terra improdutiva e inviabilizar a agropecuária.
A área classificada como semiárida está em expansão em direção ao oeste do Nordeste, pelos estados do Piauí e da Bahia e também no norte de Minas Gerais, a uma velocidade de 75 mil km² por década. Mas o estudo do Cemaden não se restringiu apenas a descrever a situação na região árida.
O levantamento também se debruçou sobre as condições de aridez de outros estados e constatou que o Centro-Oeste e a Amazônia também atravessam uma mudança no clima para regimes mais secos. O clima semiárido avança sobre áreas do clima subumido seco, que encolhem a uma velocidade de 12 mil km² a cada dez anos. Por isso, os autores do estudo afirmam que há uma aceleração do processo de secamento do clima.
Adaptação climática
Em Juazeiro, Ana Lucia tenta encontrar soluções para conviver com as altas temperaturas e a falta de chuvas. “Buscamos novas culturas que sejam resistentes a esse clima, como espécies de plantas forrageiras para alimentar os animais, hortaliças, usamos o canteiro econômico com lona para evitar infiltração, e usamos a matéria que a gente capina na cobertura dos canteiros e do roçado. Estamos replantando novas espécies, principalmente da Caatinga”.
Tomasella frisa que as soluções para essa adaptação climática já existem. “Não precisa ser uma grande inovação. É simplesmente adaptar alguma tecnologia que já existe e dessa forma nós conseguimos um uso muito mais eficiente do recurso hídrico”. No entanto, ele diz que é preciso adotar as medidas logo.
O estudo do Cemaden que descobriu a região de clima árido foi encomendado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente. Por meio de nota, a pasta informou que vai lançar ainda neste ano um novo plano de combate à desertificação e mitigação dos efeitos da seca.
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