A situação é simbólica porque atinge diretamente um dos espaços responsáveis por guardar e, em tese, difundir a memória do Ceará. Pesquisadores relatam prejuízos

Cinco anos fechada e sem data para reabertura. Essa é a situação da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. Fundada em 1867, o equipamento de cultura mais antigo do Ceará permanece inacessível, à espera de uma reforma cujos contornos beiram o improvável. Em fevereiro de 2014, quando deixou de receber visitantes, o espaço já pelejava com a falta de cuidados. Infiltrações, problemas de ventilação e a pouca acessibilidade afastavam os frequentadores e colocavam em risco o acervo histórico da instituição. Anos depois, as obras já se encerraram, mas a biblioteca ainda não foi reinaugurada por falta de mobiliário.

A situação é simbólica porque atinge diretamente um dos espaços responsáveis por guardar e, em tese, difundir a memória do Ceará. No equipamento, estão armazenados cerca de 10 mil livros raros e 80 mil edições de jornais que circularam pelo Estado e ajudam a contar a história dos cearenses. Esse conteúdo serve de fonte para pesquisadores, que se veem prejudicados com a inacessibilidade da biblioteca.

“Tenho certeza de que se eu tivesse mais tempo de usar o equipamento aberto, poderia ter encontrado outros documentos que me ajudariam na pesquisa”, afirma José Maria Almeida Neto, 30 anos, que conclui doutorado em História na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele pesquisa o uso dos bondes de tração animal em Fortaleza no século XIX e tem como uma das principais fontes os jornais da Capital nesse período. Na opinião de José Maria Neto, como a reforma da biblioteca ocorreu a partir de problemas sérios na estrutura antiga, não houve um plano para garantir a continuidade das pesquisas realizadas no local.

Biblioteca pública
Detalhe do acervo no Espaço Estação, onde a Menezes Pimentel funciona provisoriamente FOTO: NATINHO RODRIGUES

Isso, segundo ele, é grave porque, com a demora da entrega, um grupo de historiadores já se formou sem nunca ter tido acesso a esse espaço de pesquisa. “Cinco anos é o tempo de um graduado que entrou na universidade e saiu sem nunca ter a oportunidade de usar esse equipamento. São professores que se graduaram sem ter essa formação profissional importantíssima”,  acrescenta.

Durante a reforma, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) garantiu que o acesso aos pesquisadores foi mantido a partir de agendamento prévio. Ainda assim, Neto identificava barreiras para continuar o trabalho e se afligia com a conservação do material.

“A gente se preocupava porque via jornais de 1910, por exemplo, cobertos por grandes lonas pretas em um estado que não deveria ser acondicionado”

Dificuldades parecidas atravessaram o caminho do pesquisador Walter de Carvalho Braga Júnior, 38 anos, quando terminava o doutorado em História paralelamente ao período em que a biblioteca passou pelas intervenções físicas. Sem o espaço adequado para esmiuçar os jornais antigos, ele se viu obrigado a encontrar outras soluções. “A minha opção foi buscar fora, no caso, o arquivo digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Ou seja, em vez de eu buscar informações daqui, eu tive que encontrar soluções na internet”.

Esse foi o caminho que muitos dos pesquisadores tomaram com o fechamento da biblioteca. Isso é um problema, na avaliação de Walter, porque isola os estudiosos. “Quando você está em um lugar como esse, você acaba trocando ideias que contribuem para o trabalho. Agora não, ficou cada um por si”, completa.

Para se ter ideia da importância do equipamento para o Ceará, ele abriga um dos mais importantes acervos de obras raras do País. Entre elas, o site da biblioteca cita as primeiras edições de autores cearenses como Juvenal Galeno, Antonio Sales, Barão de Studart e Tomaz Pompeu de Sousa Brasil. Guarda, ainda, preciosidades como o incunábulo “Éclogas, Bucólicas, Georgicas, Eneida” do poeta Virgilio, publicado em latim arcaico na cidade alemã de Nuremberg no ano de 1492; e o Correio Braziliense, primeiro jornal brasileiro publicado na Inglaterra por Hipólito da Costa, durante os anos de 1808 a 1822.

132 mil
Obras compõem o acervo da Biblioteca Pública do Ceará

Visita

A reportagem tentou autorização oficial para entrar na biblioteca durante a última semana, mas a assessoria de comunicação da Secult informou que não havia um profissional para nos acompanhar. Sob o pretexto de visitar a hemeroteca, entramos no ambiente. No primeiro andar, onde deveria ficar a seção de obras gerais, o vazio chama atenção.

O prédio, já reformado, tem o acabamento pronto, ar-condicionado, mas não há nenhuma menção aos livros. Por lá, deveriam estar boa parte das obras do Espaço Estação, que abriga provisoriamente o acervo, no Centro de Fortaleza.

No segundo andar, funcionam a seção de obras raras e a hemeroteca. Sem funcionários acompanhando, um visitante analisava jornais armazenados no local, que ainda recebe pesquisadores. O lugar é climatizado e, aparentemente, preserva alguma organização com os jornais arquivados.

A reportagem passou cerca de 30 minutos na biblioteca. Funcionários se concentravam no setor de livros raros, ao qual não tivemos acesso. As obras civis, de fato, aparentam ter encerrado. As salas estão, inclusive, com acabamento concluído, contudo não há sinal de nenhum avanço e tampouco de uma adequação ao novo conceito proposto pela Secretaria de Cultura para a biblioteca.

Distante dos livros

Por mais de duas décadas, Deia Dantas de Andrade, 50 anos, era frequentadora assídua da Biblioteca Pública do Ceará. Leitora voraz, ela passeava pelas prateleiras quinzenalmente em busca de lançamentos de livros nos gêneros romance, biografia e história – seus preferidos. A rotina mudou quando a biblioteca “grande”, como diz, fechou em 2014.

R$ 11, 3 milhões
É o montante investido na reforma da Biblioteca entre 2015 e 2017

Um ano depois, diante do impasse da reforma, a Secult levou parte do acervo para um dos galpões da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (Rffsa), ao lado da Estação João Felipe, no Centro. O local, chamado Espaço Estação, funcionaria provisoriamente até a reinauguração da biblioteca que se arrasta. “No Centro, não tem boa estrutura. É uma coisa muito apertada, desorganizada, o prédio também não é atrativo”, desfia as reclamações.

Deia sente as mudanças. É que no local provisório as novidades do mundo literário deram lugar a exemplares mais antigos. “Não tem aquela estante de novidades, como na outra. Ficaram mais os livros velhos”, pontua a ex-frequentadora que nunca renovou o cadastro de acesso.

Ela tem razão. O espaço temporário onde está cerca de 40% do acervo da Biblioteca Pública não atrai e tem problemas: o cheiro de mofo é evidente, a climatização não é ideal e algumas salas apresentam infiltração. Com divisórias temporárias e estantes próximas umas das outras, a circulação é difícil, e a iluminação não favorece a leitura. Não é difícil ver as cadeiras de plástico desocupadas pelos poucos visitantes que tem acesso ao equipamento entre 8h e 17h, de segunda a sexta-feira.

Biblioteca Pública
Fachada da Biblioteca Pública do Estado FOTO: NATINHO RODRIGUES

A situação contrasta com a da estrutura reformada da Biblioteca Pública, que já tem vãos livres, ar-condicionado a postos e pintura refeita. Por lá, ainda continuam funcionando o setor de livros raros e a hemeroteca que nunca saíram do segundo andar do prédio. Mas é só.

No primeiro andar, onde deveriam estar os livros gerais, nada de estante, nada de palavras nem de leitores. O vazio é o cenário. É como se o próprio prédio, agora refeito, estivesse esperando alguma solução.

Fonte: Diário do Nordeste

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