Quantidade de pessoas com 60 anos ou mais interessadas em realizar o exame nacional oscila, ao longo dos anos, mas ultrapassa 360 nesta edição. Para educadores, cenário reflete empoderamento e mudanças na educação
Foram 36 anos longe de lápis e papel. Quase quatro décadas distante dos livros, das salas de aula, daquilo que, afinal, era um emaranhado de números e letras. A vontade de aprender, porém, sempre esteve perto da aposentada Raimunda do Carmo, que aos 67 anos está em processo preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2019. Ela é uma das 363 pessoas de 60 anos ou mais inscritas na prova no Ceará, o correspondente a 0,1% dos 294.992 candidatos totais no Estado. O perfil dos cearenses inscritos foi divulgado, na última semana, pelo Ministério da Educação.
A quantidade de idosos cearenses interessados em realizar o principal exame para ingresso no ensino superior tem oscilado, nos últimos 10 anos. Se comparado ao de 2010, quando apenas 193 idosos efetivaram inscrição nas provas em todo o Estado, o número de inscritos da terceira idade na edição do Enem deste ano é 88% maior – por outro lado, é o menor desde 2012, quando teve 372 candidatos sexagenários. Os dados são do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), levantados pelo Núcleo de Dados do Sistema Verdes Mares.
O nome de Raimunda esteve na lista de candidatos em, pelo menos, duas edições, quebrando uma barreira erguida desde 1980, quando parou de estudar sem ter concluído o ensino fundamental. Se, por um lado, a defasagem dificultava o retorno às aulas, em 2016, no Ceja Eudes Veras; por outro, as críticas que recebia de pessoas que a chamavam de “analfabeta” a impulsionaram ao objetivo.
“Deixei de estudar bem nova, depois que casei. Com meu filho no braço, ainda voltei, e desisti. Mas me incomodava, eu queria porque queria terminar meus estudos. Tive muita dificuldade nas aulas, no começo, porque tava com a mentalidade muito debilitada, não gravava nada direito, a redação era difícil? Mas disse que ia terminar, e terminei. Em 2018, recebi o certificado”, relembra, orgulhosa, a aposentada – e estudante.
Empoderamento
Mesmo tendo concluído o ensino médio pelo EJA, Raimunda segue frequentando a escola para aprimorar redação e português, pontos importantes para passar no Enem deste ano e cursar Gastronomia ou Nutrição.
“As pessoas vão deixar livros no terminal, e alguns que me interessam eu pego, trago, leio e depois devolvo. A professora disse que a gente tem que ler bastante, e eu me sinto muito bem sabendo das coisas”
, declara.Independentemente da queda nas inscrições de pessoas mais velhas, a busca delas por qualificação reflete uma maior amplitude de oportunidades, como avalia a orientadora da Célula de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Secretaria da Educação (Seduc), Aparecida Prado. “Há 30 anos, essas pessoas tinham mais dificuldade de entrar numa universidade. Quem morava no interior e queria cursar, por exemplo, precisava vir à Capital. Hoje, terminando o ensino médio, isso se tornou mais próximo”, pontua.
A professora do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da UFC, Maria José Barbosa, aponta que o Enem e programas de financiamento estudantil como o ProUni “retomaram a esperança” de idosos concluírem os estudos e chegarem ao ensino superior. “Hoje, eles se sentem motivados a fazer o curso dos sonhos e acreditam que podem entrar. O adulto que não estuda é emudecido por uma realidade que exige que ele tenha um título para poder falar. E os mais velhos encontram espaço na sala de aula para oralizar, se colocar, passar a ser respeitados”, avalia.
Meta
Encontrar, aliás, é (depois de “aprender”) o verbo mais conjugado pelo projetista José Francisco da Silva, estudante aos 64 anos e autodidata em computação. Há quase três anos, ele reencontrou o estímulo de que precisava para reiniciar os estudos a partir do ensino fundamental I, no Ceja Moreira Campos, em Fortaleza, e hoje se prepara para prestar o vestibular pelo Enem. A meta é ingressar em Engenharia Civil na UFC. “Já passei numa faculdade particular, mas não pude pagar. Meu maior sonho é concluir um curso superior, porque o estudo é infinito: quanto mais a gente estuda, mais tem conhecimento”, ensina, definindo o retorno às salas como “a melhor coisa que lhe aconteceu”.
Ao contrário de Raimunda, que ainda tem os livros como principais fontes de pesquisa, José recorre à internet para buscar matérias e simulados – de tão esforçado e inteligente, tornou-se referência inclusive entre os jovens. “Lá no Ceja, tem muitos meninos novos, me chamam de tio. Quando viram que eu tinha conseguido passar em 100% das matérias, diziam que eu tinha incentivado eles a estudar. Agora, tô revisando tudo, que é pra não perder o ritmo. Se você parar, já se torna mais difícil”, reconhece José, “amante dos números”, cujo maior temor em relação ao Enem é a redação.
Neste ano, o exame nacional chega à 21ª edição, e será realizado novamente em dois domingos consecutivos, dias 3 e 10 de novembro. Dos 119 municípios cearenses que registraram inscrições, cinco se destacam: Fortaleza, com 95.902; Juazeiro do Norte, 11.564; Caucaia, 10.149; Sobral, 8.712; e Maracanaú, com 7.675 inscritos. A maioria dos candidatos cearenses (45%) já concluiu o Ensino Médio, e 40% estão cursando a última série. Os chamados “treineiros” somam 14,5% das inscrições neste ano.
Fonte: Diário do Nordeste