Produção estreia em dezembro e lida com o fato do filme ser cooptado por grupos que disseminam conspiracionismo e discursos de ódio
Hollywood não foi mais a mesma desde que “Matrix” estreou em março de 1999. O filme de Lana e Lilly Wachowski impactou os primeiros anos do novo milênio. A luta dos últimos humanos contra a dominação das máquinas ainda rendeu as sequências “Reloaded” e “Revolutions” (2003).
Com a popularidade intacta, rumores de um reinício da franquia chegaram a circular. Em 2019, a Warner bateu o martelo e confirmou “Matrix 4”. Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss) voltam para um novo round em dezembro deste ano.
Lana Wachowski escreveu o roteiro e comanda a direção. O sigilo acerca da nova trama é absoluto, o que atiça mais ainda a curiosidade dos fãs deste universo. Passados 18 anos do último capítulo da trilogia, como um novo “Matrix” dialogará com os tempos atuais?
METÁFORA
Um recado de quanto a obra é atual e relevante partiu da diretora Lilly Wachowski. Em agosto de 2020, durante entrevista para um quadro da Netflix, a cocriadora defendeu que a ficção científica imaginada pela irmãs retrata a experiência de ser transgênero.
Lilly e Lana Wachowski se revelaram mulheres trans em 2010 e 2016. Na perspectiva da cineasta, o filme entrega metáfora acerca da aceitação de uma identidade própria. “Essa era a intenção original, mas o mundo não estava totalmente preparado”, revelou.
Alguns sinais da trama foram explicados pela cineasta, como o fato de Neo rejeitar o nome imposto pela Matrix ou Switch (Belinda McClory) ser um personagem com gêneros diferentes dentro e fora do programa de simulação.
A criadora destacou que o amor delas por ficções científicas e a fantasia (ela cita ter jogado o RPG “Dungeons & Dragons”) as ajudou a expressar algo tão particular. “Isso nos libertou como cineastas, porque fomos capazes de imaginar coisas naquela época que você não necessariamente via na tela”.
“Matrix 4” estreia num momento de contínuo debate acerca da transgeneridade. Contudo, a retomada da franquia se depara com um cenário paradoxal. A ideia da “pílula vermelha” foi cooptada por grupos que nunca estariam alinhados com o tema defendido pelas criadoras da obra.
NOTÍCIAS DA TERRA PLANA
O termo foi retirado da famosa cena em que Morpheu (Laurence Fishburne) oferece a Anderson (que ainda não era Neo) a escolha entre duas pílulas. “Você toma a pílula vermelha, você fica no País das Maravilhas e eu mostro a você a profundidade da toca do coelho”.
No artigo “Red pills and dog whistles: It is more than ‘just the internet’”, a jornalista Darlena Cunha explica que a frase ganhou força em fóruns da internet e passou a ser grito de guerra para teóricos da conspiração e autoproclamados “ativistas dos direitos dos homens”.
Segundo Darlena Cunha, o termo possui o efeito “apito de cachorro”. É quando você divulga um símbolo ou mensagem desconhecido para o público geral, mas que tem significado específico para um subgrupo-alvo. Esse recente caso gerou discussão acerca desta prática.
QUEM ESCUTA O APITO?
O mantra da “pílula vermelha” circula, aponta a jornalista, entre pessoas que odeiam as mulheres, são contra ideias liberais e acreditam em conspirações como ‘pizzagate’. Estão agrupados na “manosfera” e QAnon.
Essa “manosfera” é a rede online na qual estas figuras circulam. Nomenclaturas em inglês os definem. Os já citados “MRA” (ligados a “direitos dos homens”), os “PUA” (caras que ensinam como “pegar mulher”), os “MGTOW (que pregam a segregação das mulheres) e os incels (subcultura dos chamados celibatários involuntários).
Para o ensaísta Stephen Marche, no texto “Swallowing the Red Pill: a journey to the heart of modern misogyny”, a pílula vermelha é “uma reclamação masculina contínua, multifacetada e atualizada, aninhada no coração dessa manosfera”. Eles estão respondendo ao fato de as mulheres terem poder financeiro e sexual sobre suas próprias vidas e corpos. E eles não lidaram com isso ainda – Stephen March/ Ensaísta
Este movimento “red pill” vai além de um meme do mundo virtual. Representa um perigo diário para inúmeras vidas. Um caso estarrecedor acontece em Fortaleza. A professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lola Aronovich é vítima há mais de uma década de ataques organizados por estes grupos.
RESPOSTAS
O motivo da perseguição e ameaças de morte se dá por conta do “Escreva, lola, escreva”, um dos mais atuantes sites feministas do Brasil que Lola Aronovich produz desde 2008. Um trabalho que inspira homens e mulheres a pensarem e agirem em favor da igualdade.
Por intermédio de uma publicação da professora, acessamos o estudo que analisa 14 anos de atuação destes extremistas na web. Entre os cientistas envolvidos está o brasileiro Manoel Horta, que também assina outra pesquisa que identifica a “manosfera” como “porta de entrada para movimentos da extrema-direita”.
“Matrix 4” renasce em meio a um cenário com ares de distopia. Mesmo antes de chegar aos cinemas e serviços de streaming a batalha contra as máquinas já começou. Em 2020, o termo “pílula vermelha” foi compartilhado por pessoas como Abraham Weintraub (à época, ministro da Educação do Brasil), Elon Musk e Ivanka Trump.
Fonte: Diário do Nordeste